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Conheça a história do intelectual oeirense mais conhecedor das "coisas de Oeiras" no século XX

Foto: reprodução

 Foto: reprodução

Por; Valéria Soares

Possidônio foi o oeirense mais conhecedor “das coisas de Oeiras”, a primeira capital do Piauí.  Homem de jeito manso, educado e humilde, viveu 93 anos se dedicando a arte, a música e a história. Autor de notas e partituras de 11 valsas e dois hinos, o flautista é a memória musical da cidade berço cultural do estado. Conheça a vida e obra de Possidônio Queiroz.

O nome do Campus

Oeiras foi uma das 11 cidades do Piauí que recebeu um campus da UESPI para oferta de ensino regular, através do decreto de nº 10.239, de 24 de janeiro de 2000. O prédio que hoje funciona a UESPI, era a antiga Escola Normal “Presidente Castelo Branco”. Segundo o filho de Possidônio Queiroz, Francisco Queiroz, no prédio funcionou também o primeiro ginásio da cidade. “A criação do ginásio veio da luta de meu pai e outros filhos de Oeiras para criação de uma escola ginasial. Isso foi uma luta tremenda, porque as autoridades, os pais que representavam o estado, não queriam”, afirma.

Francisco Queiroz contava que a criação do ginasial era um sonho de todos os intelectuais de Oeiras, e, que o pai lecionou na escola como professor de português. Possidônio era um homem culto, dotado de um vasto conhecimento e de inúmeras profissões, que adquiriu através da formação autodidata, dentre elas podemos elencar: advogado (rábula), professor, conferencista, jornalista, historiador, filósofo, crítico literário, músico, cronista e poeta.

Possidônio durante um discurso de comemoração do dia do trabalhador em Oeiras | Foto: Arquivo Pessoal

Dedicou-se a ensinar a todos que por algum motivo lhe procuravam para orientação, tirar dúvidas e conhecer a história de Oeiras. Como um grande incentivador da educação, da história e das artes de Oeiras, a homenagem para ser patrono da primeira universidade pública foi aceita em unanimidade. Sendo apresentada pelo deputado Mauro Tapety, através da Lei Estadual nº 5.382, de 23 de abril de 2004, para nominar o prédio de “Professor Possidônio Queiroz”. Logo na entrada do prédio, uma placa ao lado direito, concretiza a homenagem no dia 15 de agosto de 2004.

Fachada da UESPI de Oeiras, criada em 2000 para oferta de ensino superior na região

“Foi feito uma festa e eu estava lá pra receber essa placa em homenagem a meu pai. E depois eu tive que fazer um agradecimento à Câmara dos Deputados e à pessoa do Mauro Tapety. Teve um documento onde todo mundo assinou, a família toda assinou essa lembrança”, rememora Francisco, filho mais novo de Possidônio.

Filho da primeira Capital do Piauí

Os primeiros passos para a formação do estado do Piauí foram dados em Oeiras. Segundo os historiadores Rodrigo Queiroz (bisneto de Possidônio) e Shayana Silva, no livro em homenagem a Possidônio, a cidade de Oeiras nasceu no entorno de uma igreja, próximo ao riacho da Mocha. Foi elevada à categoria de freguesia sob invocação de Nossa Senhora da Vitória. Por essa virtude se tornou o berço da religiosidade e devoção ao catolicismo do nosso estado.

A região que é localizada no sertão piauiense, centro-sul do estado, em 1717 se transformou em vila, passando a ser nominada como Vila da Mocha. No ano de 1761, a Vila recebeu o título de capital e passou a ser chamada de Oeiras em homenagem a Sebastião José de Carvalho e Melo, o Conde de Oeiras Português.

Por 91 anos, Oeiras foi sede do poder administrativo do Piauí, mas por questões políticas, o governador da província, Conselheiro Saraiva, decidiu transferir a capital para Teresina. Os historiadores  destacam que a justificativa era porque Oeiras estava localizada em uma região de difícil acesso a outras províncias, com terras de baixas fertilidade para a produção agrícola. Para o Conselheiro, o ideal era ter a capital próxima das hidrovias do rio Parnaíba.

Possidônio em solenidades de Oeiras | Foto: Arquivo Pessoal

Então, em 16 de agosto de 1852 a capital é transferida para a Vila Nova do Poti, elevando-a categoria de cidade, com o nome de Teresina em homenagem a imperatriz Teresa Cristina. “A transferência causou em Oeiras uma desestruturação administrativa, política e econômica por quase um século”, descrevem os historiadores. Oeiras só começa a se reerguer na segunda década do século XX, através de um movimento intelectual encabeçados por José Expedito Rêgo de Carvalho Filho, Orlando Geraldo de Carvalho Rêgo (O.G Rêgo de Carvalho), Antônio Bugyja de Sousa Brito.

Possidônio Nunes Queiroz nasce junto ao movimento cultural em Oeiras, em 17 de maio de 1904. No seio de uma família humilde, em uma cidade no sertão piauiense, o filho dos agricultores Raimundo Nunes Queiroz e Francisca Soares de Queiroz, foi sinônimo de luta e sagacidade. Descendente de escravos, sem muitas opções de estudo, não se intimidou em busca do melhor conhecimento sobre o mundo e, principalmente, sobre Oeiras.

“Possi”, como era conhecido pelos familiares e amigos, foi um dos homens que mais colaborou com a manutenção das “Coisas de Oeiras”. “Ele era um entusiasta da cultura, das artes, da música, da história e da educação dos oeireses”, afirma Rodrigo. Muito do que se sabe sobre a cidade foi relatado por Possidônio em cartas, discursos e notícias na revista “O cometa”, em que era sócio fundador.

Os escritos de Possidônio hoje são fontes para as pesquisas do bisneto Rodrigo

Formação musical e intelectual

Ao lado dos irmãos João Queiroz, Maria Anunciação Queiroz e Vicente de Paula Queiroz, Possidônio desfrutou de uma infância simples, apreciando as tradições de uma Oeiras recheada de músicos. Os primeiros passos para sua formação intelectual foram na escola particular de Dona Quininha Campos, aos 7 anos. Estudou lá até concluir o primário, passando depois a frequentar a escola do Dr. José Epifânio Carvalho. Ele era um aluno exemplar, onde as médias escolares sempre variavam entre 9 e 10. No externato Oeirense, chamava atenção dos professores pelas boas notas.

Possidônio ao lado da esposa Otacila e da neta Ceiça | Foto: Arquivo Pessoal

Desde pequeno os ouvidos de Possidônio se encantaram pelas notas musicais. Em Oeiras, nas primeiras décadas do século XX, duas bandas surgem para realizar apresentações em cerimônias religiosas e cívicas, a “ Banda de Música Vitória” e a “Banda Triunfo”. Apreciando o som das orquestras, Possidônio despertou o amor pela música. Segundo Shayana e Rodrigo, o primeiro instrumento musical de Possidônio foi uma flauta, construída por ele mesmo, feita de bambu.

Os primeiros mestres músico foram Jeremias Rodrigues dos Santos, diretor da Banda Triunfo, e o flautista João Rêgo, que lhe passaram orientações bases. Mas o conhecimento nato sobre a música veio das leituras intensas e a horas a fio treinando. Aos 20 anos, quando Possidônio decide ir morar na capital Teresina, para dar continuidade ao curso de Escrituração Mercantil, teve oportunidades para aperfeiçoar a musicalidade na flauta.

Lançamento do livro “Memórias Piauienses” e do CD Valsas Piauienses | Foto: Arquivo Pessoal

Na capital, logo que conheceu o Maestro Pedro Silva, foi convidado para participar de uma orquestra com 24 músicos escalados para tocar na posse do governador Matias Olímpio. Em Teresina, Possidônio não teve uma estadia demorada, logo retorna a Oeiras em 1926, ano marcado pela passagem da Coluna Prestes na cidade.

O filho Francisco e o bisneto Rodrigo, contam que Possidônio foi um dos oeireses que conversou com Luís Carlos Prestes. “Entre os dois houve uma relação afetuosa, há relatos que conversaram bastante. Possidônio lia muito e sabia muita coisa sobre história e política. Deve ter sido uma conversa nesse sentido”, comentou Francisco.

No livro sobre Possidônio, os autores destacaram que o discurso mais importante e gratificante da vida dele foi designado a Prestes. “Diferente das outras pessoas, Possidônio acreditada que Prestes era um líder, encabeçando um movimento em prol de um Brasil melhor”, relataram Shayana e Rodrigo.

Possidônio com Luís Carlos Prestes, durante a passagem da Coluna Prestes por Oeiras | Foto: Arquivo Pessoal

Segundo Francisco, o pai por ser um leitor assíduo, tinha uma visão de mundo conceituada e até recebeu o apelido de “Cupim de Livros”. “Papai pegava um livro, se você desse um livro pra ele ler, ele entrava no prefácio e saia na conclusão lá em baixo”, memora. Essa mesma característica foi herdada por Francisco. As revistas, os livros em cima da mesa estavam rabiscados, com algo que ele julgava ser importante anotar. “Quando eu passar para eternidade, eu vou ter também os rascunhos de algumas besteiras”, fala risonho.

Amante das Artes

Aos 24 anos, Possidônio casou com Otacília Ribeiro de Queiroz, com quem viveu 66 anos e teve 5 filhos: Maria Amélia de Queiroz Lima, Carmélia Ribeiro de Queiroz, Raimundo Queiroz Neto, Gerardo Ribeiro de Queiroz, Francisco Ribeiro de Queiroz. Dos cinco, dois ainda estão vivos. “Melinha Queiroz”, a mais velha de 82 anos, reside em Teresina e Francisco, 76 anos, mora em Oeiras.

Para o sustento da família, Possidônio começou a trabalhar como pedreiro, mas como de praxe, nas horas vagas dedicava-se aos estudos. Com o tempo viu que estava em uma profissão que não lhe agradava, logo tratou de aprender a fabricar joias. Depois conseguiu erguer um pequeno comércio no Mercado Municipal, que com o tempo se transformou em uma livraria. Segundo seu filho Francisco, na livraria ele era muito procurado para sanar dúvidas dos populares, foi por isso também que se tornou professor.

De todas as profissões, foi a de músico que deu a Possidônio o título de Beletrista, o amante das artes. Em 1930, reuniu outros músicos da cidade para formar uma orquestra, chamada “Renascença”. Dona Petroníla Amorim, 95 anos, conhecida como D. Petinha, era umas das integrantes da banda. Ela tocava bandolim nas apresentações da orquestra. Embora com a memória devassada pela idade, Petinha lembra das aulas que teve com Possidônio e da relação com o pai dela, João Francisco de Morais Rêgo. “Foi ele [Possidônio] que me ensinou a tocar as partituras musicais. Ele era aluno do meu pai, tocaram muito tempo juntos. Até que meu pai sofreu um acidente, quebrou a mão e não pôde tocar mais. Aí Possidônio também deixou, já que não tinha mais um companheiro”, contou Petinha.

D.na Petinha Amorim, aluna de Possidônio e membro da banda Renascença

A Orquestra Renascença apesar da pouca duração, esteve presente em eventos importantes na cidade, como na inauguração do Cine Teatro de Oeiras, inaugurado em 1940. Nesse dia, segundo Petinha, eles tocaram a valsa “Cecy Carmo” de Possidônio. A valsa foi uma das primeiras composições do mestre. O flautista de Oeiras compôs 11 valsas, 2 hinos e uma letra de música. Um dos hinos foi em homenagem aos 250 da igreja Matriz de Oeiras e outro para os 40 anos da Diocese de Oeiras.

Francisco Queiroz apresentando as notas da valsa Cecy Carmo

Muitas das valsas de Possidônio foram dedicadas a filhos, afilhados e amigos. Embora só umas das valsas teve letra, ela foi composta em 1941, e se chamou “ Pensando em Ti”. Possidônio compôs a valsa “Graça Infantil”, em homenagem ao filho Francisco. “Essa música o maestro Aurélio Melo da Orquestra Sinfônica fez um arranjo pra ela, e eles tocam ela as vezes, essa peça Graça Infantil”, comentou Rodrigo.

Uma passagem de gerações

“Eu sempre admirava papai tocando flauta. Você vê que ele ta na flauta ali (mostra uma foto na parede). Mas na época eu pendi pra outro tipo de instrumento, o clarinete. E ele tinha me dado uma flauta, essa flauta eu soprei umas vezes nela e guardei”, conta Francisco. A herança de pai para filho também ultrapassou gerações, o bisneto Rodrigo disse que cresceu com o Possidônio cantarolando pela casa.

Francisco Queiroz,  filho mais novo  de Possidônio Queiroz

“Ele já tava ficando cego, ficando com uma visão bem ruim. A gente ajudava muito ele, levava de um cômodo pra outro da casa. A cada percurso que ele fazia, ele cantava. Ele cantarolava algumas coisas, geralmente era música instrumental”, conta Rodrigo. Entre uma canção e outra Rodrigo tentava pegar a melodia. Quando completou os 14 anos começou a pegar nos primeiros instrumentos por influência de Vanda Queiroz, sua tia.

Segundo ele, a tia foi a primeira referência depois de Possidônio, que veio a falecer em 1996, já se aproximando dos cem anos. “Eu percebi ela cantando. Ela tinha um violão em casa, eu pegava o violão e ficava brincando. Um dia ela pega e me dar esse violão”, disse.  Já na flauta, ele começou a tocar em 2004 quando foi fazer um curso de música no Instituto Federal do Piauí (IFPI).

“Como eu tava com a flautinha doce, cheguei em Oeiras brincando com ela. Francisco, meu tio avô, perguntou se eu queria tocar uma flauta, a transversal. Eu disse que queria. Aí ele disse ‘vai lá em casa que eu vou te repassar um negócio’. Chegou lá ele me mostrou uma flauta de Ébano, que o Possidônio deu a ele quando criança”, conta.

Rodrigo Queiroz, bisneto de Possidônio curador e pesquisador do acervo do bisavô

As heranças de Possidônio não possuíram valor financeiro. Francisco destaca que o pai não foi um homem de posses, de terras, mas foi dono de um conhecimento infinito, que se sobrepôs ao tempo. Ele é uma grande referência para Oeiras e o estado do Piauí. Parte da memória de Possidônio o bisneto Rodrigo preservou nas pesquisas acadêmicas de graduação e pós-graduação, além de um memorial.

De acordo com Rodrigo, o universo de cartas que Possidônio deixou davam muitos conteúdos sobre diversas facetas. O cotidiano da cidade, mediação cultural, educação, política, música e história.  “Ele começa a se apresentar como intelectual de Oeiras e como um cara que produz sobre a história de Oeiras”, finaliza Rodrigo.

 

* As citações referentes ao filho de Possidônio Queiros, Francisco Queiroz, foram colhidas em 2017, quando este ainda era vivo. Francisco Queiroz faleceu em março de 2019.

Emanuel Vital

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