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A Reprodução da Reprodução do Passado: o 24 de janeiro de 1823. Por Rogério Newton

Foto: reprodução HIO

 Foto: reprodução HIO

A 24 de abril de 1821, as Cortes de Lisboa declararam os governos provinciais do Brasil subordinados diretamente a Lisboa. Esse fato resulta da chamada Revolução Liberal do Porto, que, entre outras coisas, pretendia a volta de Dom João VI a Portugal e a “recolonização do Brasil”. Na época, o governo do Piauí era exercido por Elias José Ribeiro de Carvalho, que foi imediatamente afastado. Em seu lugar foi instituída, após eleição em outubro de 1821, uma junta provisória de seis membros, na qual Manuel de Sousa Martins ocupou o cargo de vice-presidente, o que denota sua influência e poder entre as forças políticas locais.

Era uma época conturbada. O governo português exigia de Dom Pedro I o juramento da Constituição e obediência às cortes. Pressionado pelas elites coloniais brasileiras beneficiadas por medidas tomadas por Dom João VI nos doze anos em que a família real esteve refugiada no Brasil, o imperador proclamou a independência, em 07 de setembro de 1822. Porém, isso não foi um ato isolado, mas continuidade de um processo que já estava em andamento. O próprio Dom João VI havia dito ao seu filho Pedro que proclamasse a independência, antes que algum aventureiro o fizesse. Muitas perturbações e lutas vieram para construir e consolidar a independência. O Piauí e Oeiras também experimentaram agruras desse processo político.

Em agosto de 1822, as cortes lusitanas enviam para Oeiras o Major João José da Cunha Fidié, comandante das armas, com o objetivo de sufocar eventuais movimentos separatistas, que, como um rastilho de pólvora, se alastravam pelo país. Fidié recebeu ordem do governo central instalado no Rio de Janeiro para aderir à independência, mas, ao contrário, partiu com o grosso das tropas para a Vila da Parnaíba, no litoral piauiense, a fim de debelar o movimento que havia proclamado a independência naquela vila, em 19 de outubro de 1822. Fidié supunha ser improvável a deflagração de um movimento separatista na conservadora Oeiras. Enganou-se.

Relata George Gardner que próceres da independência da Bahia e Ceará enviaram cartas a pessoas ilustres do Piauí, solicitando apoio à causa, mas os destinatários negaram-lhes adesão. Nenhuma dessas missivas foi endereçada a Manuel de Sousa Martins, o que, segundo Gardner, atestava a pouca importância política que desfrutava naquele momento. No entanto, Sousa Martins soube aproveitar bem a ocasião. Pelo mesmo emissário que trouxe as cartas e voltava com a respostas, enviou suas correspondências, afirmando que estava disposto, junto com amigos, a aderir à independência.

Durante a ausência de Fidié de Oeiras, as respostas dos separatistas da Bahia e do Ceará chegaram a Sousa Martins, aconselhando-o a não perder mais tempo. Eles prometeram armas, munição e gente para as lutas que fatalmente surgiriam, como de fato surgiram.

De fato, Sousa Martins e poucos correligionários e parentes conspiraram a adesão ao movimento separatista e, na madrugada de 24 de janeiro de 1823, executaram o que havia sido planejado. Segundo Gardner, “Para este fim prendeu imediatamente os membros do governo provisório, que se encontravam em Oeiras, encarcerando-os, juntamente com outros que eram, ou se suspeitava que fossem, membros do partido oposto”. Ao que se saiba, não houve derramamento de sangue em Oeiras naquele dia. Os episódios mais sangrentos e trágicos ocorreram durante a Batalha do Jenipapo e o cerco a Caxias, que durou onze meses, ao fim do qual Fidié foi preso e enviado para o Rio de Janeiro.

Sousa Martins e seus amigos e parentes aderiram ao movimento de cunho monárquico, que terminou por ser hegemônico, fiel a Dom Pedro I e às forças políticas que optaram pela independência

mantendo-se a figura do imperador e a classe dirigente proprietária dos meios de produção. Os separatistas de Oeiras, liderados por Sousa Martins, não perfilaram os movimentos que propunham a independência com instalação da república, como a Revolução Pernambucana, de 1817, e a Confederação do Equador, de 1824. Esta última também sufragava a liberação dos escravos.

Na verdade, e divergindo um pouco de Gardner, antes de se destacar como personagem histórica no processo da independência do Piauí, Sousa Martins gozava de posição com poder e influência. Além de ter sido vice-presidente da junta provisória que sucedeu a Elias Ribeiro de Carvalho, ocupou o nada desprezível cargo de Tesoureiro da Fazenda Real e já era latifundiário e dono de gado e escravos, mais do que símbolos de poder na época. Ingressou nas forças militares como soldado raso, galgou elevados postos na vida militar e alcançou altas honrarias, como o Hábito da Ordem de Cristo (1811) e Cavaleiro da Ordem de Cristo (1814), que atestam seu “status” na classe hegemônica da estratificada sociedade colonial e imperial. No excelente artigo O Visconde da Parnaíba e a Construção da Ordem Imperial na Província do Piauí, o historiador Pedro Vilarinho Castelo Branco lembra que “o seu acesso aos altos cargos políticos da Província se dá no início dos anos 1820, período marcado por intensa agitação política em Portugal e no Brasil”.

Com muita sede de poder, era natural que Sousa Martins encontrasse forte oposição, inclusive entre os próprios familiares, como provam os conflitos com o irmão Joaquim de Sousa Martins. As oposições ao seu nome, dentro e fora da família, foram relatadas pelo já citado historiador Pedro Vilarinho Castelo Branco:

“Em fevereiro de 1822, seguindo as determinações da Assembleia Constituinte, foi feita uma outra eleição, para definir uma Junta de Governo Provisória, desta feita, Manuel de Sousa Martins, que ambicionava continuar ocupando espaço político, sofreu uma oposição ao seu nome, acabando por ficar de fora da Junta de Governo que se formara. Cabia ainda à junta a nomeação do comandante das Armas da Província, mas a prevenção contra Manuel de Sousa Martins continuou, e encontraram razões para afastá-lo da função: era militar da reserva, ocupava a função de Tesoureiro da Junta da Fazenda. Foi, assim, preterido mais uma vez. A mais alta função militar da Província acabou ocupada pelo Coronel Joaquim de Sousa Martins, seu irmão”.

É provável que Sousa Martins tenha ficado ressentido para com o império português, por sua preterição ao cargo de presidente da Junta de Governo Provisório. Seja como for, o episódio talvez o tenha feito se encaminhar para a tendência separatista que ganhava corpo então, que era a independência do Brasil, com a manutenção da monarquia, aliás, escolha que destoava das demais nações americanas, que proclamaram suas independências políticas instituindo simultaneamente a república. Seguindo certa continuidade ao projeto colonial, o Brasil foi o último país americano a proclamar a independência e a libertar seus escravos.

Preterido à junta governativa, Sousa Martins alimentava planos de voltar ao poder. E a oportunidade surgiu após Fidié partir para combater os insurgentes de Parnaíba, deixando Oeiras bastante vulnerável, sem proteção militar. Com aliados locais e levando em consideração a promessa de que forças da Bahia e do Ceará viriam em seu auxílio, Sousa Martins lidera as ações do dia 24 de janeiro, toma Oeiras, “sem grande esforço”, prende os membros da junta fiel a Portugal e constitui nova junta provisória, na qual ocupa o cargo máximo. Os outros cargos são ocupados por aliados e parentes.

A partir de então, Sousa Martins envia ofícios às câmaras municipais e ao próprio Fidié, identificando-se como presidente da junta governativa. Mas sua posição, apesar de importante,

não era ainda definitiva, pois a junta era provisória e instalara-se à força. Para consolidar sua posição de chefe do governo, Sousa Martins teria que obter a nomeação do governo imperial sediado no Rio de Janeiro. Para esse fim, indicou seu próprio nome e dos aliados políticos e parentes, para comporem o “staff” político da província fiel ao imperador. No entanto, o grupo político que assume o governo da Província do Ceará faz oposição a Sousa Martins e informa ao governo imperial que a adesão do Piauí à independência devia-se ao “grande empenho dos cearenses” e a Simplício Dias da Silva, líder político da Vila da Parnaíba. Segundo o historiador Pedro Vilarinho Castelo Branco:

“Na construção discursiva do processo de independência do Piauí, supostamente elaborado em ofício encaminhado pelo Governador da Província do Ceará endereçada às autoridades Imperiais, em seguida divulgado seu conteúdo na imprensa cearense, os louros do feito deveriam ser direcionados às tropas cearenses e também a Simplício Dias da Silva, líder político da Vila de Parnaíba, o primeiro a declarar a independência do Piauí e a adesão ao Império do Brasil, ainda em 19 de outubro de 1822”.

Para derrota de Sousa Martins, no final de 1823, o imperador nomeia Simplício Dias da Silva como novo Presidente da Província do Piauí. Nesse ponto ocorre o fato aparentemente inesperado: Simplício Dias da Silva não toma posse no cargo e demora a decidir-se para tal. Especula-se sobre a aparente recusa: o patriarca da Parnaíba tinha a sede de seus lucrativos negócios naquela vila, exercendo forte influência no norte da província. Se aceitasse o cargo de presidente, fatalmente teria que transferir-se para Oeiras, então capital, o que o deixaria distante da pecuária e das relações mercantis que o enriqueceram. É possível que aquela situação fosse uma oportunidade para a mudança da sede de governo de Oeiras para Parnaíba, mas assim não se deu. O período histórico era conturbado. A transferência da capital só se faria em 1852, para Teresina, e não para Parnaíba.

Como Simplício Dias da Silva demorava a se decidir e o imperador não resolvia a situação, Manoel de Sousa Martins foi escolhido como presidente pelo Conselho Provincial. Seu primo, o padre Marcos de Araújo Costa, era o vice-presidente. Assevera Pedro Vilarinho:

“Mais uma vez, a Junta de Governo, chefiada por Manuel de Sousa Martins era absolutamente composta por homens com vínculos familiares e/ou políticos com ele. Mantinha a estratégia como arma para afastar os possíveis adversários, bem como para fortalecer e se hegemonizar nas estruturas do poder político no Piauí”.

Em seguida, as vilas de Campo Maior e Parnaíba negam juramento à Constituição de 1824, outorgada por Dom Pedro I, e aderem ao movimento republicano da Confederação do Equador, que conta com seguidores nas províncias do Norte do Brasil. Simplício Dias da Silva retira-se do movimento rebelde, que é prosseguido no Piauí por seus companheiros de 19 de outubro de 1822. Segundo Pedro Vilarinho, Sousa Martins soube bem aproveitar a situação:

“A rebelião das vilas de Campo Maior e Parnaíba, regiões de forte influência política de Simplício Dias da Silva, vai ser utilizada por Manuel de Sousa Martins para deslegitimar os grupos oligárquicos ao Norte da Província e favorecer e atrair mercês e prestígio para seu grupo político, centralizado em Oeiras”.

Sufocada, não sem lutas, a Confederação do Equador, o imperador finalmente nomeia Manuel de Sousa Martins presidente da Província do Piauí. Sua posse deu-se em 01 de maio de 1825. Recebe

o título de Barão da Parnaíba. Sua hegemonia no poder político local consolida-se após sua participação na Balaiada, após a qual recebe mais uma graça por sua fidelidade ao governo imperial: o título de Visconde da Parnaíba. Permanece no poder por vinte anos, até 1843, quando é exonerado por Dom Pedro II, após intensa campanha de adversários políticos ao seu longo governo despótico.

Na conclusão ao artigo em que discorre sobre a participação de Sousa Martins na construção do poder imperial no Piauí, afirma Pedro Vilarinho Castelo Branco: “Manuel de Sousa Martins, a despeito de suas limitações iniciais, conseguiu usar as ferramentas de ascensão social presentes nas sociedades colonial e imperial e auferir para si e para sua parentela: poder, honra, prestígio social e patrimônio”.

Como a independência política do Brasil, mas não econômica, e as lutas cruentas que fizeram parte indissociável da sua ocorrência e consolidação constituem um processo complexo de acontecimentos, personagens históricas e interesses de classe, as narrativas de tal processo não podem se circunscrever a um roteiro linear que colocam em relevo a atuação de chamados “vultos históricos”, desvinculados da complexa trama social, política e econômica. Em algumas dessas narrativas, a participação de Manuel de Sousa Martins é tão acriticamente glorificada que o transformam num mito ou num semideus.

No excelente artigo Movimentos Sociais do Século XIX: Resistência e Luta dos Balaios no Piauí, a Profa. Dra. Claudete Maria Miranda Dias, do Departamento de Geografia e História da Universidade Federal do Piauí, usa interessante epígrafe de Christopher Hill, que diz o seguinte:

 

“A história precisa ser reescrita a cada geração, porque embora o passado não mude, o presente se modifica; cada geração formula novas perguntas ao passado e encontra novas áreas de simpatia à medida que revive distintos aspectos das experiências de suas predecessoras”.

Por conta das narrativas construídas com objetivo de tornar hegemônicos ora o grupo político centralizado na Vila da Parnaíba, liderado por Simplício Dias da Silva, ora o situado em Oeiras, capitaneado por Manoel de Sousa Martins, ainda hoje persiste no Piauí a disputa entre representantes desses dois grupos pelo protagonismo nas lutas pela independência no Piauí. Isso é compreensível, mas não salutar para a compreensão dos fenômenos históricos e sociais e suas consequências no presente. Daí a afirmação de Christopher Hill: “A história precisa ser reescrita a cada geração”.

Referências:

CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. O Visconde da Parnaíba e a Construção da Ordem Imperial na Província do Piauí. Revista Clio Recife, v. 38, p. 205-230, 2020. Disponível em PDF em https://dialnet.unirioja.es › descarga › articulo. Acesso em 02/01/23.

DIAS, Claudete Maria Miranda Dias. Movimentos Sociais do Século XIX: Resistência e Luta dos Balaios no Piauí. ANPUH – XXII Simpósio Nacional de História – João Pessoa, 2003. Disponível em PDF em https://anpuh.org.br › anais-simposios › pdf. Acesso em 02/01/23.

GARDNER, George. Viagem ao Interior do Brasil. Disponível em PDF em https://bdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/308/1/223%20PDF%20-%20OCR%20-%20RED.pdf. Acesso em 02/01/23.

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