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EM TORNO DE TI. Por; Rogério Newton

Fotos: Renato Andrade/Cidadeverde.com

 Fotos: Renato Andrade/Cidadeverde.com

Dois seguranças uniformizados, com cara de poucos amigos, observavam a apresentação do rapper Preto Kedé para uma plateia quase toda constituída por estudantes, no segundo dia da Feira da Literatura Piauiense – Felipi, semana passada, em Teresina. A cena parecia um detalhe sem importância, mas na verdade era muito reveladora: a linguagem verbal e corporal provocava um incômodo difícil de ser suportado pelas duas personagens que tinham por missão velar pela segurança do shopping center onde o evento foi realizado.

O que parece um mero detalhe pode ser estendido para toda a sociedade. Quer dizer: as formas de expressão de pessoas negras, moradoras da periferia, são insuportáveis para integrantes ou não, mas principalmente, das classes sociais remediadas e do topo da pirâmide. O episódio extrapola as questões econômica e racial, e outros aspectos emergem, por exemplo, a incapacidade de prestar atenção ao que o Outro sente e diz. No caso, sentir e dizer se deram pela via da expressão artística.

Preto Kedé nasceu e vive no bairro Santo Antônio, zona sul de Teresina. É um MC, isto é, mestre de cerimônia, porta-voz de pessoas sem vez e sem voz. Não só descreve e denuncia problemas da comunidade e das “quebradas”, mas também orienta, propõe saídas, está engajado em movimentos que mantenham acesa a alegria de quem vive em campo minado, no qual se transformou a periferia das grandes cidades brasileiras.

Como se espera que sejam os modos de se exprimir de uma pessoa negra, nascida em uma família igualmente negra e pobre, num bairro idem, habituada a um cotidiano cheio de assimetrias, desigualdades, violências de todo tipo, individuais e sociais, entre elas a violência policial?

O sociólogo estadunidense Peter Berger afirmou certa vez que o local de nascimento de uma pessoa é muito poderoso na definição do seu destino social. Isso poderia ter colocado o rapper na marginalidade, por exemplo. Ele próprio, mais de uma vez, foi vítima de repressão policial, pelo fato de ser negro, andar gingado e usar boné e tranças no cabelo.  Alguns de seus amigos de infância foram mortos em idade jovem.

O rap como missão. Isso ficou muito claro na sua apresentação na Felipi. Entenda-se missão como radicalidade existencial, sem a qual a vida apodrece ou vira refugo. Seu estilo reúne a força de quem sente a dor na pele e a transforma em arte e grito, cuja expressão não é “educada” e se dá de forma vigorosa no visual, na dança, no jeito de cantar as letras inquietadoras, provocantes, como em Rap É Uma Flor: “Minha lágrima cai como gotas de chuva / gotas que não acabam nunca”.

No rap que, pela repercussão, o tornou rapidamente conhecido, o cantor e compositor deu uma resposta à violência do aparato policial fardado e armado, nos idos de 2013, em que Teresina estava com outras cidades no mapa da fúria. Foi um ato de coragem nominar os algozes. Dizer com as letras da indignação o tamanho da atrocidade, que atualiza tempos obscuros: “Enquanto a cicatriz não sara / os hematomas lembram as chibatadas na senzala”.

Preto Kedé não está brincando de fazer rimas com a desgraça. Ele sabe e proclama em alto tom: Eu vim da África! “Minha África me conhece / Sou da quebrada / A quebrada sabe o que merece / Principalmente aqui na zona sul / que acontece, graças a Deus / Imagina se não fosse o rap!”.

Eu Tou de Patrão, outra composição dele, é uma crítica social com ironia e bom humor, ética misturada à estética, balanço negro e ritmo envolventes: “Acorda pra vida e vai atrás do seu tostão / porque amanhã é outro dia / e você, você não pode parar não. / Precisamos de dinheiro pra se manter / pra sair da situação / a hora é essa, então bota pra render / senão não fica de patrão / você tem que ter dinheiro / tem que sair do bolso / tem que ser guerreiro / sair do calabouço”.

O rap e a vontade de mudar a realidade uniram Preto Kedé a dois outros compositores: Aliado e Lu de Santa Cruz. A violência sangrava nas vilas São José e Santa Cruz, e eles sentiram que tinham que dar uma resposta através da música e do cinema. Gravaram clips, mostraram e fizeram shows nas comunidades. A vida é que tem que vir na frente, abrindo caminhos. Não a morte.

Na música do rapper, as influências dos ritmos negros se cruzam. Por isso o reggae é uma presença marcante em boa parte de suas composições, cuja matéria prima é a vida nos bairros pobres, que só quem vive lá conhece. Nos clips, marcante também é a paisagem urbana. Os cenários idílicos só aparecem como elementos de uma linguagem agudamente crítica, como em Eu Tou de Patrão e Black Money.  

Na apresentação durante a Felipi, Preto Kedé mostrou de peito aberto o que veio fazer neste mundo, “onde, se você vacilar, você escorrega”. As tranças longas como serpentes lembram as de Bob Marley. As pequenas, de outras imagens, as de Itamar Assunção. Sua performance no palco está intrinsicamente vinculada à música e à visão da vida e do mundo, que ele crê devia ser de todos. Enquanto isso não acontece, um mundo sem donos, “deixa a chuva cair / deixa o céu se abrir / deixa o mundo girar / não só em torno de ti”.

 

* Rogério Newton é escritor, ambientalista e defensor público

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