Receber notificações
  Facebook
  RSS
  Whatsapp

O QUE É O AMOR. Por ; Rogério Newton

Foto: reprodução

 Foto: reprodução

Um livro sem prefácio, sem palavras na orelha pode ser um recado para o leitor chegar às suas próprias conclusões. É assim Despedida, da escritora piauiense Clara Mello, lançado em 2017, pela Chiado Editora, de Portugal.

É a história de uma moça que mora no Rio de Janeiro e decide ir para uma praia deserta, onde pretende ficar sozinha numa casa misteriosa. Não sabe o que a levou até lá, além do carro e do barqueiro. Mas, no fundo, sabe que é impulsionada por dois desejos aparentemente contraditórios: quer paz e ficar “ancorada no meio do nada”.

Disse que é uma história, mas é apenas um pedaço, pois o relato se dá entre duas sextas-feiras, o que é muito pouco para uma vida inteira. Mas são oito dias importantes. Se não fossem, não seriam transformados no segundo romance da autora. O primeiro é A Casa de Isabel, publicado em 2010, com o qual estreou na literatura, aos 16 anos.

Despedida é narrado na primeira pessoa. A personagem que o protagoniza, cujo nome não se conhece, chega à casa de praia à noite e aí começam os devaneios de sua mente labiríntica, que inconscientemente procura escape. Ao olhar o mar, tem a sensação de que ali será esquecida para sempre, talvez porque soubesse que a prova dolorosa de sua prisão era ela mesma.

O leitor que me acompanhou até aqui já intuiu que se trata de uma narrativa psicológica. No cenário constituído pela casa, a praia e o mar, um fato inesperado cai como uma luva sobre os anseios recônditos da personagem: ao mudar um jarro ou tapete de lugar, ela encontra um papel velho e amarelado. Era uma carta de amor, uma ruptura, uma carta de despedida, cuja leitura fornece material para um jogo de espelhamentos entre o casal que se separa e a leitora, metida de livre vontade naquela solidão que contrasta com o turbilhão dos seus pensamentos.

A carta é longa, descreve de forma pungente os sentimentos do autor, que ama Laura, mas, paradoxalmente, decide ir embora e tenta explicar os motivos num escrito impossível. No plano construtivo interno do livro, a carta ocupa quase toda a narrativa e se transforma, quero crer, em sua espinha dorsal.

Tábua de salvação e oráculo, a carta deflagra pensamentos e sentimentos confusos, mas parece que a protagonista procura e gosta daquele jogo que a faz sofrer e ao mesmo tempo a prepara para uma catarse. Ela se torna, por necessidade e solidariedade feminina, amiga de Laura, com quem se abre em diálogos (ou monólogos), numa intimidade de confidentes:

“Laura, minha pobre Laura, como será que ficou seu coração depois dessa carta? E o meu, como será que está? Desde que cheguei aqui, e comecei a ler esta carta, não sei sequer de mim”.

Parece que essa falta de chão tem a ver com o ego, que começa talvez a ser desfeito. Por isso, ela, que foi sempre vaidosa, nem mais olha-se no espelho. O espelhamento agora é outro: um processo interno, psicológico, que a faz pensar que está ficando louca, tal a intensidade e a tensão, que encontra na carta, na casa, no mar e na solidão aliados perfeitos para aumento da voltagem.

Muitas vezes, a discussão interna fragmenta a personagem em duas: uma, racional e controladora; outra, mais para o lado intuitivo. Felizmente, encontra na casa uma garrafa de cachaça: “Isso de falar comigo mesma está me deixando louca, preciso beber mais”.

Em algum momento, o missivista afirma que está na sala dos espelhos. Eu diria que o livro como um todo é uma sala de espelhos, construída engenhosamente pela escritora. Os espelhamentos só existem como tal por causa da fina tessitura da linguagem, na qual o leitor certamente se sentirá também perplexo e expectante no redemoinho da busca por sentido e dos esforços para juntar os cacos da vida.

É uma boa história, com temas importantes da existência humana se cruzando. Mas nenhuma história, por melhor que seja, prescinde da linguagem para lhe dar forma literária. A linguagem de Despedida é cuidadosamente tecida com manejo eficaz dos recursos da prosa. Só poderia ser uma prosa poética. 

Há um momento em que o mar se personifica:

“O mar me queria mesmo, o mar me queria mais que nunca. A cada vez que a água recuava, eu sabia que viria com mais força. Começou tomando meus pés, depois minhas pernas, até subir sem vergonha até minhas coxas, passar dos meus quadris. A garrafa quase vazia e o mar no meu colo, nos meus peitos, nos meus braços, chegando à minha boca. O mar queria me beijar, aproveitando nosso momento a sós.”

O livro começa e termina numa sexta-feira. Isso significa um ciclo que se conclui. Por pouco, não dura sete dias, o que seria uma equiparação simbólica ao Gênesis. O barqueiro que transporta a narradora lembra Caronte, mitológico e assustador. A casa, o céu, o mar são símbolos fortes. Tudo isso parece conspirar para uma jornada do herói, que, em última análise, é a vida de cada pessoa, no caso, uma heroína cujo nome não se sabe, fustigada por perguntas e enigmas que não envelhecem. 

No final, ela aparentemente encontra o nada, que pode levar perigosamente ao niilismo. Mas não é isso. O nada para ela é o “zero point” de um caminho, agora de passos leves, embora tortos, mas que nele é mais real a possibilidade do amor. O que é o amor? 

‘Laura, o amor sempre é um mergulho na escuridão. É contrato que se assina sem ler, é viagem sem rota, é como engravidar do filho de Deus”.

 

Rogério Newton é escritor, ambientalista e defensor público

Mais de Cultura