Receber notificações
  Facebook
  RSS
  Whatsapp

Os cegos de São Miguel. Por; Carlos Rubem

Antônio Custódio. Foto: reprodução

 Antônio Custódio. Foto: reprodução

O meu pai, Ditinho Reis (1928 - 2009), era proprietário da Farmácia Popular, situada numa esquina ao lado Sul da Rua da Feira, hoje, Praça Coronel Orlando Carvalho. Tal estabelecimento, fundado em 1966, geminava-se com a casa onde morávamos.

O meu velho, principalmente aos sábados, dia da feira citadina, obrigava-me, em criança, ajudá-lo no atendimento de sua vasta clientela. 

Aviava a venda de diversos comprimidos: Melhoral, Cibalena, Enteroviofórmio; pilulas de Mato (prateadas), Jalapinha, Contra Estuporares, Jalapa Pião; pacotes de Bicarbonato, Sulfato de Sódio, Salamargo, Ruão, Enxofre, Pedra Hume “et religua”.

De sorte que, às vezes, deparava-me com o receituário prescrito pelo Mestre Elias, cidadão baixo, atarracado, residente no povoado São Miguel, pertencente, hoje, ao município de São João da Varjota.

Tinha a fama de curandeiro, rezador de vento caído, quebranto. Leva de doentes o procurava para submeter-se aos seus cuidados mediúnicos.

Não menos famosos eram os irmãos Miguel, Antônio e Francisco Custódio da Cruz, já falecidos, sobrinhos do Mestre Elias, filhos do seu irmão João.

Do seu matrimônio, João houve uma fileira de mulheres. — Quero ter um filho homem, nem que seja cego, blasfemava. Dizem que, como castigo, os seus três últimos e aludidos filhos, nasceram cegos. Radiosas figuras.

O Miguel não se aquietava. Socava-se no oco do mundo. Embrenhou-se no Maranhão. Nunca mais deu notícias. Presume-se a sua morte.

Antônio era violeiro. Apresentava-se em diversos eventos festivos. Manteve diário programa na Rádio Primeira Capital. 

Há muitos anos, em barracas que se armavam na noite anterior à feira, onde se vendiam comidas, bolo frito e cachaça, sempre em dupla, improvisava versos que agradavam os circunstantes, inclusive a mim.

Certa noite, encontrou-se com um parceiro, de passagem pela velha urbe, seu desconhecido. Passaram a duelar em verso. O visitante, durante a peleja, assacou-lhe uma descompostura, elogiava-se. Antônio, de bate-pronto, rebateu-lhe:

“Rapaz, deixa de foba
Isto assim já tá demais,
Pois tu pra ser biroba
Só falta mijar pra trás”

O Francisco, chamado de “Padim Chico”, vagava pela cidade, em passos curtos, para todo lugar, sem usar bengala. Dobrava as calças até ao meio da canela. Cheirador de torrado. Quem com ele falasse, reconhecia, de chofre, a voz do interlocutor. 

Muito religioso, recatado. Dizia que em Oeiras havia apenas dois donzelos: ele e o Padre David Ângelo Leal.

A cada ano se dirigia, em cima de Pau de Arara, à Juazeiro do Norte e Canindé, no Ceará, para render homenagem ao Padre Cícero e à São Francisco, respectivamente.

Há pouco, localizei um vídeo em que o “Ceguinho do São Miguel”, como também era identificado, aparece caminhando a sós, ao lado de um muro.

Fiquei deveras emocionado ao revê-lo. Imagens cedidas pelo amigo Carlos Francisco Almeida de Oliveira, psiquiatra, que, acompanhado da sua atual esposa, a jornalista Cláudia Brandão, veio colher depoimento (inédito) do Professor Possidônio Queiroz, em 1992, acerca das causas e tratamentos da marcante loucura dos nativos.

 

*Carlos Rubem é promotor de Justiça aposentado em Oeiras

Mais de Cultura