Receber notificações
  Facebook
  RSS
  Whatsapp

Oeirense conta história ao socorrer vítimas da tragédia em Brumadinho

 

Cinco meses do rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho (MG), o oeirense Julyanno Freitas, o "cabo Freitas" do Corpo de Bombeiros do Maranhão, sente calafrios ao relembrar dos dias em que serviu no resgate das vítimas. ?Sempre tenho lapsos de memória: são imagens, sons, cheiros? que remetem aos sete dias vividos em meio à lama.

Assim que a informação do rompimento foi confirmada, as corporações dos Corpos de Bombeiros em todo o país iniciaram uma lista de voluntários para ajudar no resgate das vítimas que, em junho de 2019, de acordo com último boletim de Polícia Civil de MG, chegavam a 246 mortos identificados e 24 pessoas desaparecidas. Acredita-se que o número de vítimas é superior aos dados já divulgados.

A barragem 1 de rejeitos de minério de ferro da Mina do Feijão rompeu no dia 25 de janeiro de 2019. Era uma sexta-feira, início da tarde, quando surgiu um rastro de lama e destruição em Brumadinho, localizado na região metropolitana de Belo Horizonte, na época com 36 mil habitantes. Neste dia, Julyanno estava de folga na casa da sua mãe em Oeiras.

Freitas chegou com o seu grupo durante a madrugada. A alegria de rever os irmãos de farda se misturou com a tristeza da realidade uma vez que o reencontro tinha como cenário um das tragédias - ou seria crime? - que mais chocou o país. Ele lembra que a pacata noite de uma pequena cidade do interior mineiro foi tomada por sirenes e girolex das viaturas; havia pelo menos uma em cada esquina, que disputavam espaço com os carros de familiares das vítimas e dos veículos de imprensa. Todos buscavam por notícias. "Parecia uma cidade grande. Era como se ela estivesse viva, mas estava tudo fechado".



Julyanno mais 14 bombeiros foram incluídos na lista do Maranhão e ficaram no aguardo do Comando Geral para iniciar a viagem ao estado mineiro. Eles foram divididos em dois grupos (MA 01 e MA 02). O primeiro foi enviado no segundo dia após o rompimento; o outro, no qual Julyanno estava inserido, foi após sete dias de ocorrência.

Chegada a hora de ir ao local por onde passou o tsunami de rejeitos, que soterrou diversas casas e atingiu o rio Paraopebas (afluente do rio São Francisco), e provocou a morte de pessoas e animais, o cabo Freitas conta que precisou "abrandar o coração" para agir de maneira operacional, seguindo com disciplina os comandos que envolviam todas as equipes.

"Era tudo muito organizado: cada equipe entrava na aeronave e desembarcava no quadrante que iria atuar no dia. O nosso objetivo em si era fazer uma busca visual ou por meio de um ?mau cheiro? encontrar algum segmento de corpo (cadáver) ou veículo".

Freitas recorda que os bombeiros ficavam vagando em meio ao córrego, caminhando sempre atentos, pois existiam locais em que a lama continuava mole. Por muitas vezes, eles afundavam ou ficavam atolados. "Era uma situação de muito risco porque algum morro de lama poderia desmoronar sobre nós. Era tudo muito pavoroso e chocante, a gente olhava ao redor e só tinha lama". Alguns bombeiros estavam acompanhados por cães farejadores.

"Ficar vagando na lama era exaustivo e perigoso. Então passamos a também ficar próximo das máquinas, ajudando os operadores, observando se algum segmento de cadáver ou de veículo iria cair da pá. Era ao mesmo triste e desgastante porque ou a gente encontrava algo ou não encontrava nada".

Quando algum segmento de cadáver era encontrado, ele era depositado em um saco cadavérico específico. A depender da logística, era despachado por meio do rádio ou bombeiros ficavam com ele até retornar para a base e repassá-lo ao setor responsável para análise de DNA.

O cabo reflete que localizar um segmento para posterior identificação era uma tentativa de reconfortar as famílias que, sabendo da difícil missão de encontrar vítimas com vida, tinham a esperança de pelo menos sepultar os parentes que partiram de maneira tão trágica.



"A maior tristeza para mim não era estar na ocorrência, pois sabia que estava fazendo o meu trabalho, mas era chegar a Brumadinho, as pessoas nos reconhecerem como bombeiros e chorarem ao contar a história de um primo, de um amigo de infância, que eles sabiam que não iam mais voltar ou que, talvez, jamais seriam encontrados".

A cada retorno das buscas, os bombeiros passavam por um processo de desintoxicação diante da exposição aos minérios. A atenção à saúde também ocorreu no retorno das equipes
voluntárias aos seus estados. "Nós recebemos um acompanhamento médico disponibilizado pela mineradora Vale. Eu passei por uma bateria de exames porque para cada tipo de metal era feito uma coleta de sangue, por exemplo. Graças a Deus, os meus deram normais".

Apesar de estar com a saúde física íntegra após uma experiência tão marcante, Julyanno precisou, por busca própria e desejo pessoal, iniciar um tratamento psicológico. Até hoje, desde quando retornou de Brumadinho, faz terapia com um psicólogo para equilibrar a mente diante da intensidade dos sentimentos vividos.

"Nós voltamos bem abalados. Nós somos do Corpo de Bombeiros, somos preparados para trabalhar em situações difíceis, mas também somos seres humanos. A gente precisa se cuidar, preservar a nossa saúde para manter a cabeça sã. Estou me mantendo tranquilo, mas ainda é difícil relembrar daqueles dias".

Freitas ressalta que nunca passou por uma experiência parecida ao longo dos seus 31 anos de vida. "Foi uma situação única, de grande conhecimento técnico, principalmente pelos bombeiros de MG que já haviam vivido o rompimento (da barragem) em Mariana, e de respeito pelo próximo".

Das memórias de Brumadinho, o piauiense guarda com carinho o reconhecimento do trabalho realizado. "Existem maldades e ganâncias no mundo, mas também existe amor dentro do coração de alguns cidadãos. Ter esse retorno é gratificante, principalmente no reconhecimento do nosso trabalho; a gente ama a nossa farda. Posso dizer que a minha vida é servir ao Corpo de Bombeiros".



Julyanno decidiu fazer o concurso do Corpo de Bombeiros do Maranhão por acaso e ingressou na corporação em 2013. Ele fez o curso de formação em Caxias, município em que atuou por quatro anos, e, agora, está lotado em Codó. Por coincidência, ele nasceu no dia 04 de maio, data em que se comemora o Dia Internacional do Bombeiro.

Acaso ou não, agora ele carrega a honrada missão de enfrentar mares de lama e de fogo, superar obstáculos, escalar montanhas e prédios, arriscando a própria vida para salvar outras vidas. As mais controversas situações enfrentadas pelos bombeiros deram a eles a denominação de "super-heróis na vida real", nada mais justo para uma profissão tão fascinante.

MATÉRIA PUBLICADA NA REVISTA CIDADE VERDE

 

FONTE: Revista cidadeverde

Emanuel Vital

Mais de Oeiras