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HEROÍNA REVISITADA. Por; Rogério Newton

O teatro é fascinante, mas é uma arte das mais difíceis.

Foto://www.fortalezaemfotos.com.br/

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O teatro é fascinante, mas é uma arte das mais difíceis. Foi o que pensei nos instantes iniciais de Jovita Feitosa ou A Heroína de 1865, encenada ontem à noite na Oficina da Palavra, em Teresina, pelo Grupo Trama de Teatro.

O texto é de 1912, escrito por Jônatas Batista, e só veio a ser encenado pela primeira vez em abril de 1914, pelo Recreio Teresinense. A peça, classificada como “drama histórico”, tem três atos, que correspondem, respectivamente, à história de vida de Jovita Feitosa, nos lugares onde viveu - Jaicós, Teresina e Rio de Janeiro -, após a migração de sua família do Ceará para o Piauí.

Pode-se dizer que a encenação levada a efeito ontem é uma feliz “introdução” à vida daquela que é considerada uma das personagens históricas mais interessantes do período imperial e de toda a história do Brasil.

Sua saga começa quando decide alistar-se como voluntária para lutar na Guerra do Paraguai. Como isso não era permitido às mulheres, ela corta o cabelo, veste-se de homem, mas é descoberta. Mesmo assim, é aceita e toma parte entre mais de mil pessoas recrutadas no Piauí para o conflito. O Ministério da Guerra a proíbe de combater e a oferece “afazeres femininos”: lavar, passar, cozinhar, cuidar de feridos. Ela recusa. Mas há quem diga que foi à guerra, onde teria falecido em plena luta, e não no Rio de Janeiro, de forma também trágica, aos 19 anos de idade.

No texto de Jônatas Batista, o motivo que fustigou Jovita foi o recrutamento forçado de seu noivo Henrique, em Teresina, fato que frustrou o casamento. Outro pretendente se apresenta, Anacleto, um tanto insolente, e é rechaçado com veemência por Jovita. Mas essa versão é controvertida. Uma das especulações é que a heroína decidiu ir à guerra porque mulheres brasileiras eram estupradas por soldados paraguaios, fato que a coloca como uma mulher à frente do seu tempo, não só por isso, mas também porque sua decisão significou rupturas com a família, a autoridade eclesiástica, a sociedade, o “status quo”.

Significou também ruptura política, já que a peça, pela boca da personagem, é uma crítica à monarquia decadente, que mantinha uma guerra questionável e recrutava pobres, pretos e desapadrinhados. Pode ser entendida – como extensão alegórica - como uma crítica aos primeiros anos da vida republicana. Aliás, Jônatas Batista pertencia a um grupo de intelectuais piauienses desiludidos com os rumos da recém-proclamada República.

A peça também não deixa de ser atualíssima, pois tem como episódio motriz uma guerra. Como todas as guerras se parecem, tem seus evidentes pontos de contato com a guerra Rússia x OTAN e suscita importantes discussões. Ilustrativo disso é o diálogo entre Jovita e o Padre João, este último a voz conservadora ou reacionária:

“Padre João – Mas isso é muito egoísmo de sua parte, minha filha. Os homens têm desses deveres imperiosos.

Jovita (sempre exaltada) – Egoísmo? ... Egoísmo sim; mas egoísmo pelo amor; enquanto que o egoísmo da pátria nada mais é do que o interesse de meia dúzia de ambiciosos. Para que eles subam, para que eles se elevem, felizes e satisfeitos, arrancam os filhos das mães, os irmãos às irmãs, os noivos às noivas. E a recompensa? A morte estúpida e cruel e, logo depois, o esquecimento e a ingratidão”.

A montagem feita pelo Grupo Trama de Teatro é realista, como o próprio texto o é. Daí cenário, figurinos etc realistas, também porque a direção de João Vasconcelos procurou manter a máxima fidelidade ao texto de Jônatas Batista. O fato de ser realista não determina

por si só o acerto ou desacerto de nenhuma obra de arte. Isso depende de muitas coisas importantes. Uma delas é a unidade. A peça tem unidade, do começo ao fim, e seu elenco é de qualidade: Claudia Souza (Jovita); Fernando Freitas (pai de Jovita); Maneco Nascimento (Padre João); David Ambrósio (Anacleto).

Necessário ressaltar aqui a importância da Lei Aldir Blanc, de incentivo à cultura. Sem ela, não haveria o projeto Oficina das Artes, coordenado pelo ativador Gilson Caland, que recebeu o espetáculo e receberá outros, não só de teatro, e não só no espaço físico da Oficina da Palavra.

A Lei também possibilitou a edição de autores piauienses. Por isso, quem viu a peça ontem saiu com as mãos cheias de livros. Tudo gratuito para o público: a peça e os livros! Mui cara foram a camaradagem e diálogos após a encenação, entre elenco, diretor e as poucas pessoas afortunadas presentes, até a hora de Gilson fechar o portão da Oficina.

Venham mais “livros à mão cheia” e bom teatro!!!

 

* Rogério Newton é defensor público aposentado, poeta, cronista e ambientalista.

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