Localizada em pleno semiárido piauiense, a cidade de Oeiras tem se notabilizado um rincão sertanejo peculiar. Entre outras, o fato de ter sido a primeira capital do Piauí sempre a destacou entre os duzentos e vinte quatro municípios do estado. Chamada de "Berço da civilização piauiense”, por ter sido neste que se ergueu a primeira fazenda de gado do que viria ser mais tarde, vila, cidade e primeira capital. “Terra de escritores, intelectuais e loucos", são características marcantes do reconhecido “berço da cultura piauiense”. 

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), aponta a origem de Oeiras vinculada ao desenvolvimento da pecuária no Piauí e ao surgimento de grandes fazendas de gado. No lugar conhecido por "Mocha", nome de um riacho situado, formou-se uma povoação com capela filiada à freguesia de Cabrobó, da Diocese de Pernambuco. A povoação passou à freguesia, em 1696, sob a invocação de Nossa Senhora da Vitória, sendo elevada à categoria de vila com a denominação de Mocha, em 1712.

Centro Histórico de Oeiras, Igreja Matriz de Nossa Senhora da Vitória em Oeiras-PI. Foto: Emanuel Vital

Desde seus primórdios a relação com o preceito religioso católico sempre fez parte do imaginário oeirense. Esta se estreita ao longo dos séculos, e a cidade passa a cultuar vários ícones e santos do catolicismo. Durante um ano inteiro vários são os momentos dessa devoção, com destaque para: Festa do Divino Espírito Santo, Festejos de Nossa Senhora da Vitória (Padroeiras de Oeiras e dos piauienses), Festejos de Nossa Senhora do Rosário, Festa de Nossa Senhora da Conceição, bem como a realização das maiores celebrações religiosas da semana Santa do Piauí com fulcro na Procissão do Bom Jesus dos Passos, Procissão de fogaréu e do Senhor Morto. Fatos estes a fazem ostentar os títulos de Patrimônio Cultural Brasileiro e Capital da Fé.

Porém, é na secular romaria ao Bom Jeus dos Passos que toda essa devoação religiosa se torna perceptivel.  O dia amanhece, e o som que se ouve é do repique dos sinos da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, em Oeiras. Em muitos lugares, um dia como outro qualquer, mas nesse rincão piauiense é na sexta-feira que antecede a Sexta-feira Santa que o rito católico confirma o início da maior celebração religiosa da Semana Santa do estado do Piauí.

Na cidade tricentenária, a ‘sexta-feira de passos’ se inicia com a celebração da missa na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, essa se faz aos pés da imagem centenária do Bom Jesus dos Passos. Para tanto, é a noite anterior, ‘quinta-feira da fugida’ que se inicia a solenidade devocional. Após missa na Matriz de Nossa Senhora da Vitória, um cortejo acompanha a procissão. 

De acordo com a igreja católica, este ritual simboliza a fuga de Jesus Cristo para o Monte das Oliveiras, preparando-se para a via dolorosa. A imagem de Bom Jesus dos Passos é levada da Catedral de Nossa Senhora da Vitória, coberta por um dossel roxo, e em silêncio é acompanhada por fiéis, até a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, situada em ponto de relevo elevado da cidade, o bairro Rosário.

Durante a noite da quinta e o dia da sexta-feira, a Igreja do Rosário torna-se o santuário do Bom Jesus, visitado por milhares de romeiros vindos da zona rural de Oeiras, da capital Teresina, de outras cidades do Piauí e de outros estados.

Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário se transforma no Santuário do Bom Jesus dos Passos. Foto: Emanuel Vital

Logo nas primeiras horas da manhã da ‘sexta-feira de passos’ acontece a missa do Bom Jesus na Igreja do Rosário. Ao meio dia de sexta-feira é rezado o Ofício dos Passos na Igreja do Rosário. Centenas de fiéis participam. O ofício é melodiado por vozes que ora rezam, ora cantam o martírio de Jesus Cristo, e relatam a paixão e morte de Bom Jesus. A assembleia de participantes faz um ato de contrição, pedindo perdão a Deus pelo sofrimento de Jesus Cristo. Esse é para os romeiros um momento de agradecer e de fazer pedidos ao Santo. O canto é também uma versão latina do Miserere, uma versão do salmo 51, quando a entoação pede perdão ao senhor pelas transgressões. 

HINO EM HONRA AO SENHOR DOS PASSOS

 A vós eu venho Bom Jesus / buscar conforto e minha dor / A dor que mais meu peito sente / É ter-vos eu tão pouco amor.

 Senhor, Bom Jesus dos Passos / Senhor eterno e sem fim / por vossa sagrada cruz / compadecei-vos de mim.

 Se foram as minhas culpas / a causa do mau fim / Senhor, esquecei-vos delas / compadecei-vos de mim.

 Não morrestes pelos anjos / Nem por nenhum Serafim / Sim por mim foi que morrestes / Compadecei-vos de mim.

 No dia em que  eufor  julgado  /  Não  terei  ninguém  por  mim  /  Nesse  dia então meu Deus / Compadecei-vos de mim.

 Ó meu Bom Jesus dos Passos / Dai-me na morte um bom fim / Naquela hora mais terrível / compadecei-vos de mim.

Nosso Senhor dos Passos, ou Senhor Bom Jesus dos Passos, é uma invocação de Jesus Cristo e uma devoção especial na Igreja Católica a ele dirigida, que faz memória ao trajeto percorrido por Jesus Cristo desde sua condenação à morte no pretório até o seu sepultamento, após ter sido crucificado no Calvário.

A história desta devoção pelo mundo remonta à Idade Média, quando os cruzados visitavam os locais sagrados de Jerusalém por onde andou Jesus a caminho do martírio, e quiseram depois reproduzir espiritualmente este caminho quando voltaram à Europa sob forma de dramas sacros e procissões, ciclos de meditação, ou estabelecendo capelas especiais nos templos.

A Procissão do Bom Jesus dos Passos e a fé dos romeiros em Oeiras-PI

Este ano, a sexta sexta-feira de passos se fez acontecer no dia 22 de março, dia da tradicional procissão do Bom Jesus dos Passos em Oeiras. A celebração é uma invocação de Jesus Cristo e uma devoção especial na Igreja Católica a ele dirigida.

Multidão acompanha Procissão do Bom Jesus dos Passos em Oeiras. Foto:Emanuel Vital

É por volta das 16h:30 da ‘sexta-feira de passos’, na tradição oeirense celebrada a mais de 200 anos, os devotos do Bom Jesus dos Passos dão início ao cortejo. Os milhares de romeiros que acompanham a procissão o fazem carregando objetos como: pedras, cruzes, ‘flor de passos’, descalços ou vestindo túnica roxa. Os Fiéis seguem, parando e rezando nos cinco ‘passos’ (capelas) que existem durante o percurso pelos becos e ruelas de Oeiras. Em cada passo se repetiu um ritual de cantos, queima de incenso e bênção da imagem de Bom Jesus.

'Flor de Passos' não nasce da Terra

Não nasce da terra, mas das mãos habilidosas dos fiéis. A Flor de Passos, um dos muitos símbolos de fé encontrados durante a Procissão de Bom Jesus dos Passos, que acontece na cidade de Oeiras, só é feita para este evento religioso que acontece há mais de 200 anos na cidade, no período da Semana Santa.

Comuns em toda a cidade, a 'flor de passo' é um objeto encontrado apenas em Oeiras, já o seu talo é feito com palha de buriti. O objeto é utilizado para decorar as Capelas de Passos, que por sua vez são abertas apenas uma vez no ano durante a procissão do Bom Jesus.

Romeiro segura 'Flor de Passos'.Foto: Emanuel Vital

Feita de forma artesanal pelas famílias tradicionais de Oeiras, com cores diversas e na forma similar à flor de açucena, a flor de passos é um símbolo de fé e crença.

Durante a procissão, uma das personagens centrais da teatralização do momento, rouba a cena, é Maria Beú. Ela e mais três formam o grupo de mulheres que vestidas em trajes épicos representam: Verônica, Maria Madalena, Maria de Cléofas e Salomé. Verônica carrega nas mãos um fragmento de tecido, como se fosse um pergaminho, com uma pintura que representa a face do Bom Jesus. É o Sudário, desenrolado por ela em todas as estações ou passos.

A historiadora Áurea Pinheiro afirma que ao abrir o sudário e cantar ora em português e em latim nos cinco passos da via crucis, ela está a rezar a lamentação do Profeta Jeremias, em latim. 

Ó vos ommes, qui transitis per viam, atendite etvidete si est dolor sicut dolor, dolor meus, meus, meur; traduzida para o português: Caminheiros que passais por este caminho parai e olhai por favor se neste mundo existe uma dor assim tão grande, como uma dor de minha dor, de minha dor. 

“Verônica é conhecida em Oeiras como Maria Beú, em razão da estrofe final do canto em latim meus. Com o passar dos séculos, as pessoas entendiam beú em vez de meus. E assim passaram a chamá-la de Maria Beú”, aponta a historiadora.

Testemunhando a fé e agradecendo

Muitos peregrinos chegam a Oeiras para participar da romaria para pagar alguma penitência ou agradecer por alguma graça alcançada. Um exemplo dessa demonstração de fé está no testemunho do florianense Wellington Pereira da Silva. Ele viajou 110 quilômetros da sua cidade natal, Floriano, onde participou pela primeira vez da celebração. Com Wellington uma réplica da imagem do Bom Jesus dos Passos. “Estou prestigiando esse momento muito bonito de devoção, mas também de agradecimento. É a primeira vez que participo e trago comigo a réplica da imagem do Bom Jesus dos Passos que representa a unidade das dioceses de Oeiras e Floriano que já foram unidas. Nesse momento de fé, estou aqui agradecendo por uma graça alcançada. Estava desempregado e fiz o pedido ao Santo rezando o terço ao Bom Jesus. Poucos dias depois de forma inesperada estava empregado. É uma emoção muito grande. Essa certamente não será a última vez que estarei nesta romaria”, destacou Wellington. 

Fiel viaja mais de 100 quilômetros e agradece por graça alcançada. Foto: Emanuel Vital

No ‘passo municipal’ (sede da prefeitura de Oeiras) uma construção do século XIX, diante das imagens de Nossa Senhora das Dores e do Bom Jesus é celebrado o sermão do encontro. Em torno de 40 mil romeiros acompanham atentamente a homilia (sermão do encontro) que foi proferida pelo Bispo Dom Ronilton Souza de Araújo, da Diocese de São Raimundo Nonato.

"Às vezes parece que no dia a dia caminhamos sozinhos, mesmo em meio a uma multidão. Há dias como diz o cantor popular “que a gente se sente como quem partiu ou morreu.” Vem então um momento como este a nos confirmar na fé. Nunca estamos sozinhos. Somos rodeados pela comunhão dos santos, os da terra e os do céu! Vejam aqui! Mas sobretudo nunca estamos sozinhos porque Jesus caminha conosco…Caminha, romeiro do Bom Jesus, seguindo os passos do Senhor! É no caminho que Ele aquece o nosso coração com a sua Palavra, é no caminho que Ele abre os nossos olhos para o sentido dos acontecimentos confrontados com as Escrituras. “Não ardia…”, proclamou o Bispo. 

Após esse ato litúrgico a procissão segue pelas ruas do centro histórico de Oeiras com presença das duas imagens sacras. Antes do fim, a procissão passa ainda pelo ‘passo do engano’, neste a imagem do Bom Jesus é conduzida e, em evolução circular dá três voltas tentando enganar os soldados romanos, e o ‘passo da Naninha’ até chegar ao adro da Igreja de Nossa Senhora da Vitória, adentrarem a mesma e aguardar um ano inteiro para a romaria do ano seguinte. 

Patrimônio Cultural e imaterial

Aprovado pelo legislativo oeirense em abril de 2020, o Projeto de Lei 1903 de 27 de abril de 2020 institui a “Procissão do Bom Jesus dos Passos” como patrimônio cultural e imaterial do povo oeirense. O Projeto é de Lei autoria do vereador Espedito Martins. 

A propositura entende que a tradição oeirense se enquadra no designato de Patrimônio Cultural e Imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas, junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.

Milhares de fiéis se reunem na maior romaria do estado do Piauí. Foto: Prefeitura Municipal

“Oeiras ganha mais um instrumento para compor a sua história. De acordo com o projeto, a Secretaria de Cultura e Turismo do Município providenciará o que for necessário para viabilizar a execução da presente Lei”, salienta o autor do PL.

A seguir, assista ao documentário etnográfico, produzido e editado em 26 minutos sobre a Procissão dos Passos. Apresentam-se as crenças e os rituais emblemáticos da religiosidade do Nordeste, do Estado do Piauí e de Oeiras em particular.