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Crônica: Aquele natal das crianças do Rosário

Igreja de Nossa Senhora do Rosário

 Igreja de Nossa Senhora do Rosário

*Por; Zildete Rodrigues

 

A exatidão daquele ano é confusa, no entanto o fato é inesquecível. Início dos anos 1970, os nordestinos sobreviviam com dificuldades a mais uma de suas inúmeras secas. A fome campeava os pobres lares de Oeiras. Frente de emergência foi criada pelo governo, amenizando assim, o desespero dos oeirenses carentes.

Ainda assim, em meio a esse sofrimento, a imaginação andava solta. Histórias reais e fantásticas surgiam a cada instante: o velhinho andante – magrinho, cabeludo, trajando roupas brancas e rasgadas. Nele, a crença popular via a possível imagem de Jesus Cristo. Em um Barroco parcialmente desenvolvido, unindo sagrado e profano, emergia também a aparição (apenas na fantasia) da besta-fera. “É o demônio que está na terra”, afirmavam os mais velhos, assustando desse modo, a criançada. E nessa atmosfera barroquiana, um anjo viria fazer a alegria das meninas e meninos do bairro Rosário.

Em um cenário tão paradoxo, as crianças corriam, brincavam, pulavam e gritavam. As brincadeiras eram as mais diversas possíveis: cinturão queimado, trinta e um (esconde-esconde), jogos com bola de meia, entre outras. E em volta a tantas brincadeiras, a meninada ainda alimentava um sonho: ganhar pelo natal um presente de Papai Noel. “Quem sabe uma boneca...” Suspirava a menina. “Quem sabe um carro...” Fantasiava o menino. Tudo parecia distante, até que um dia, um anjo bate às portas dos lares do bairro Rosário.

A tarde estava quente, Dona Maria preparava a chaleira com água, rapadura e levava-a ao fogão de lenha. Hora de fazer o café e aguardar a chegada do marido, que vindo do serviço visivelmente cansado, encontrava repouso ao lado da mulher e dos filhos.

Nessa tarde, uma visita inesperada veio alterar a rotina da família.

__ Ó de casa! Dona Maria está em casa? Posso entrar?

__ Quem é? Entrem senhoras.

__ Estamos fazendo o alistamento das crianças para que no fim do ano, pelo natal, elas possam ganhar presentes. Quantas crianças com idade entre zero e quatorze anos, a senhora tem?

Dona Maria, silenciosamente movimentou os lábios e contava nos dedos.

__ Dez crianças. Afirmou convicta da sua conta.

__ Quantas meninas e quantos meninos?

__ Seis meninas e quatro meninos.

E dali em diante, de casa em casa, embora sob a desconfiança das mães, aquelas senhoras alistaram todas as crianças do bairro. As famílias conheceram a história de fé geradora daquela ação solidária.

Tudo aconteceu por conta de uma família oeirense, que alguns anos antes havia migrado, como era de costume, para São Paulo. Em um dia de alegria, no preparo de um churrasco, um dos filhos, um menino, veio a se queimar. As queimaduras envolvendo o corpo inteiro correspondiam a terceiro grau. Os socorros foram imediatos, os cuidados intensos e, ainda que estivessem em um lugar de medicina avançada, para a época, a cura parecia impossível.

Os médicos não acreditavam mais, o garoto definhava a cada dia. Porém maior do que os recursos humanos eram os espirituais. Aquela família acentuadamente religiosa, de uma fé inabalável, entregou seu filho nas mãos de Nossa Senhora do Rosário. O tratamento foi longo, o menino, aos poucos, recuperava-se em casa. No seio daquele lar, a fé movia montanhas. A recuperação se processava a olhos vistos e a alegria voltou a habitar aqueles corações.

Em certa manhã ensolarada, a caminho da estradinha de chão batido da Rua Brigadeiro Manoel Clementino, rompendo a ladeira da furna da onça, surgia um carro carregado de brinquedos. A meninada de olhos brilhantes e bastante apavorada ladeava o veículo. Agora, os adultos também vinham até as calçadas para testemunharem aquele ato de fé e alegria.

Promessa feita, promessa realizada. Conforme as anotações, de casa em casa, cada brinquedo era entregue na mão da criança. Boneca para as meninas e carro para os meninos. As bonecas eram de dois modelos: a Emília e a Mara (que não era a Maravilha). Os carros atendiam à marca da época: passat, corcel, opala, entre outras. Instantaneamente a rua se enriqueceu de cores, movimentos e alegria. Naquele momento mágico, quem se atreveria a dizer quais olhos brilhavam mais? Eram mais luzentes? Os das crianças que recebiam felicidade, ou os do menino que doava felicidade?

A euforia foi enorme, o corre-corre, os gritos, os sorrisos. Agora a felicidade tinha nome: Os meninos do Rosário. As crianças quase não paravam nem para se alimentar. As ruas do bairro viviam congestionadas, meninos e meninas dormiam abraçados a seus brinquedos. Parodiando Casimiro de Abreu, em sua poesia “Meus oito anos”, essas crianças adormeciam sorrindo e, despertavam a cantar.

Aquele Natal, provavelmente o mais importante de suas vidas, maculou de felicidade os seus corações. Hoje, muito tempo depois, o presente é uma janela que se abre para o passado e descortina a mais bela obra esculpida pelo artista-anjo. Ainda ouve-se o eco que sonorizava as ruas do bairro. Nos adultos de agora, sonha e brinca a criança de outrora.

 

*Zildete Rodrigues da Silva é Licenciada em Letras / Português; Especialista em Estudos Literários

Emanuel Vital

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