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O fado temerário. Por; Rogério Newton

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O poeta, letrista, escritor e economista Acilino Madeira me lembrou outro dia que o cientista político e historiador José Murilo de Carvalho afirmara que há três grandes heranças do período colonial brasileiro: escravismo, latifúndio e apropriação indébita. Talvez por isso há quem afirme, com razão, que ainda temos bem presentes na vida nacional a Casa Grande e a Senzala, não apenas como símbolos, mas como realidade.

A atualização da expressão cunhada por Gilberto Freyre é pertinente, mas peço licença para lembrar aqui a Casa da Torre dos Garcia d’Ávila, cujas ruínas estão na praia do Forte, Bahia. É considerada o único castelo da américa portuguesa. Pode ser exagero, mas transmite bem a ideia de feudo.

O primeiro Ávila chegou ao Brasil com Tomé de Souza. Seus descendentes tornaram-se os principais pecuaristas e latifundiários do Brasil Colônia. Chegaram a possuir a metade do Piauí e boa parte dos sertões do Nordeste, a ponto de se tornarem donos de uma área maior que a de Portugal. Eram também donos de engenhos. Em 1676, Francisco Dias d’Ávila mandou degolar, de uma só vez, 400 tapuias e aprisionou mulheres e crianças.

Garcia d’Ávila Pereira de Aragão, nascido em 1735, é da quarta geração. Considerado o mais rico e cruel brasileiro escravista, foi condecorado com a comenda Cavaleiro da Ordem de Cristo, naturalmente pelos relevantes serviços prestados a Deus, à Família e à Pátria.

À tríade do historiador José Murilo de Carvalho poderíamos incorporar grandes riquezas e crueldade, que parecem andar sempre juntas na vida brasileira, desde o final do século XV.

Guardadas as proporções, a Casa da Torre parece ainda subsistir no Brasil contemporâneo. Certamente mudou de forma, mas, em espírito e método, continua a mesma. Ou continuam as mesmas, pois são vários feudos, e podemos identificá-los no agronegócio, nos latifúndios, na indústria, na política e em outros setores.

Na história do Brasil, o binômio dinheiro-crueldade faz parte da existência estrutural do exercício do poder político. Há exceções à regra, mas é pouco provável que alguém seja eleito para o Senado e Câmara Federal sem que o poder econômico seja fator determinante. Daí os pequenos ou grandes feudos, o Centrão, as bancadas da Bíblia, do Boi, da Bala e outras, os acordos nem sempre de cavalheiros, os conchavos, as negociatas, conspirações, golpes, apropriações indébitas do público pelo privado... Na votação do "impeachment" da então presidente Dilma Rousseff, parlamentares proclamavam "Por minha família", "pelo Brasil", e coisas do gênero. A tríade de José Murilo de Carvalho tem outra companhia: a hipocrisia.

 

As heranças do Brasil Colônia e da Casa da Torre estão cada vez mais visíveis e inseridas na atual disputa pela Presidência da República, com requintes de crueldade e de cinismo. Analistas falam do caráter “plebiscitário” desta eleição, pois esta define escolhas diametralmente opostas e polarizadas: Democracia ou Ditadura. E que por isso mesmo é a mais importante de quantas houve na República. Sem dúvida, é isso mesmo. A polarização é também um padrão mental humano.

Duas coisas entre outras caracterizam a Idade Moderna, em seguimento à Idade Média: a redução da autoridade eclesiástica e a progressiva autoridade da ciência. Mas, no Brasil contemporâneo, especialmente após o atual presidente chegar ao Planalto, a influência do chamado neopentecostalismo aumentou e a importância da ciência está sendo sistematicamente negada, e foi principalmente no período mais crucial de enfrentamento da Covid. Ao invés de acolher o protocolo científico referendado pela OMS, o presidente preferiu negá-lo com o objetivo claro de favorecer o culto a si mesmo como estratégia ao seu projeto político seduzido pelas formas autoritárias de poder e de personalismo reacionário.

Uma autocracia não pode ser implantada sem propaganda ideológica massiva e sem a invenção de inimigos internos e externos, reais ou imaginários. Além do culto ostensivo à sua personalidade, o projeto político do presidente oblitera as pautas pungentes, como economia, fome, desemprego, educação, em função de ficções, que de tanto repetidas adquirem foros de verdade. Comunismo e nacionalismo verde-amarelo são exemplos de ficção, entre tantos. É o protofascismo brasileiro, pautado no despotismo, na ignorância e na violência como fato cotidiano.

A propaganda ideológica do atual protofascismo brasileiro tem por endereço certo o cérebro emocional. Nesse ponto, há uso da ciência como ferramenta de sustentação desse projeto político e social, suscetível de mais apropriações indébitas encetadas por interesses ególatras.

Há uma teoria segundo a qual o ser humano possui três cérebros, um dentro do outro: o reptiliano, o límbico e o racional. Tais cérebros foram sendo formados durante a jornada evolutiva. O cérebro racional (neocórtex) é o mais recente. O cérebro límbico é o da maioria dos mamíferos, também chamado de cérebro emocional. E o reptiliano é o mais antigo, desprovido de sentimento humano.

Segundo o site da Nova Escola de Marketing, "entendendo como funcionam os sistemas Reptiliano, Límbico e Neocórtex, os profissionais de marketing criam abordagens diferentes de acordo com o produto ou serviço oferecido, influenciando diferentes áreas do cérebro em busca da máxima eficiência de suas ofertas, aumentando a percepção de valor, criando sensações positivas ou utilizando técnicas de persuasão mais eficazes".

Os meios especialmente midiáticos de persuasão do protofascismo brasileiro dirigem-se principalmente ao cérebro emocional. É nessa região que o cérebro faz tomadas de decisões baseadas predominantemente nas emoções. Não faz esforço para pensar, analisar, estudar, ponderar, usar a ciência e a lógica. Na publicidade é a abordagem preferida para fomentar o consumo, muitas vezes de produtos ruins. As mentiras, que hoje receberam o nome chic de “fake news”, veiculadas e repetidas sistematicamente nas mídias e nas chamadas “redes sociais”, não são obras de amadores. O objetivo é alcançar a parte do cérebro que não faz esforço para pensar e assim gerar tomadas de decisões instantâneas, precipitadas, sem o crivo da racionalidade. Agora, imaginem decisões precipitadas e equivocadas na política, sem exercício da faculdade do discernimento, as quais podem não só aumentar a desigualdade entre a Casa Grande e a Senzala, mas também restabelecer o feudo da Casa da Torre, com feições mais modernas para as apropriações indébitas do público pelo privado, para as quais as altas finanças estão, como sempre, de prontidão, sorrindo.

Referindo-se às emoções grosseiras, muitas delas mau-resolvidas, o psicólogo austríaco Wilhelm Reich, no livro O Assassinato de Cristo, cunhou uma expressão dura: "peste emocional da humanidade", aparentemente contínua, cujos resultados são obviamente desastrosos. Quem diria que outro livro dele, A Psicologia de Massas no Fascismo, escrito em 1933, seria leitura importante no Brasil contemporâneo? O livro foi escrito pouco antes da ascensão do nazismo, que Reich considerava não ser obra de um homem só, e teve apoio da burguesia. O protofascismo brasileiro também não é obra de um homem só.

Há uma história muito conhecida em que um grupo de cegos é convidado a apalpar um elefante e em seguida descrevê-lo. O cego que tateou a orelha, descreveu o elefante como uma orelha; o que apalpou a tromba, descreveu-o como uma tromba; o que pegou na calda, descreveu-o como cauda; e assim por diante. Nenhum cego descreveu o elefante na sua totalidade, com visão integradora. É uma metáfora para os tempos atuais de protofascismo brasileiro.

Não é difícil imaginar a que pode levar a disseminação em larga escala de um tipo de sociedade (des)orientada por falácias, padrões mau-constelados, e sombras direcionadas para se implantarem nas mentes individuais e - o que é pior - na mente coletiva.

O escritor Machado de Assis é autor de uma afirmação célebre: "O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco". Nos tempos atuais, o Bruxo do Cosme Velho certamente seria mais severo na sua apreciação. Parafraseando-o, o país oficial é grotesco e explicitamente usa ignorância, cinismo e crueldade como modos de governar. A Casa da Torre ressurge das aparentes ruínas de Tatuapara.

Parafraseio também Rumi. Estaríamos perdidos se além das causas não houvesse mistérios e maravilhas. Neste mundo trapaceiro, somos peças no tabuleiro de xadrez, e o fado é temerário. O que precisamos é de luz. A poesia é uma delas, como nesse fragmento do poeta:

Os que dominaram o mundo
E oprimiram e conquistaram
Seus nomes são como letras dos nomes dos criminosos
Conquistador entre nós é aquele que sabe amar
Dá-me a flauta e canta e esquece a injustiça do opressor
Pois o lírio é uma taça para o orvalho
E não para o sangue.

 

*Rogério Newton é Defensor Público aposentado, escritor, poeta e ambientalista

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