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PERFORMANCE DO 24 DE JANEIRO. Por; Diógenes Luz

Foto: reprodução

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PERFORMANCE DO 24 DE JANEIRO

Por; Diógenes Luz

Na véspera do último 24 de janeiro, aconteceu uma experiência estética pública, em frente ao Museu de Arte Sacra, em Oeiras, enquanto se desenrolava uma solenidade oficial na parte interna daquela Casa, com a presença do Governador do Estado e de várias outras autoridades.

A experiência estética foi uma performance de teatro, encenada por um único ator, que deixou muitas reticências e interrogações no ar. Por que ele escolheu a via pública para a cena, naquele local e naquela data em que se comemorou 199 anos da chamada adesão do Piauí à Independência do Brasil?

Como todo artista tem uma intencionalidade ao produzir uma obra de arte, ou seja, o que pretende comunicar e a que público ou públicos pretende alcançar, a performance não foi um ato gratuito e inconsequente, ou mero protesto político.

Primeiro, é preciso falar um pouco sobre o significado de performance, no mundo do teatro e da arte. Segundo, é preciso lembrar que o teatro é uma das artes mais incompreendidas em Oeiras, que já possuiu vários grupos de teatro em sua história. A primazia na cidade é para música, poesia e literatura. Parece que as outras artes não existem. Mas aquele ator solitário veio dizer que o teatro está vivo.

Todas as artes passaram por transformações a partir das vanguardas do início do século XX. A performance também. Hoje pode-se dizer que performance significa ação, uma intervenção artística de uma pessoa no presente, com sua presença, interferindo no mundo real. Não necessariamente quem faz a performance, chamado “performer”, está representando ou usando a mimese clássica. E pode interagir com o público e cocriar algo novo. Assim, o conceito de público e espectador mudam totalmente na performance e de alguma forma estão inseridos nela, direta ou indiretamente.  Performance é ato-jogo, geralmente provocativo.

No caso específico da performance do 24 de janeiro, vamos falar de alguns elementos que ajudam a compreender aquele ato e seus possíveis significados. Em primeiro lugar, a performance deu-se na rua, espaço público, sem as delimitações do teatro burguês. O espaço da rua para teatro, performance ou qualquer forma de arte é um espaço instigante, território livre, não está sujeito à rigidez e “liturgia” que as casas de teatro geralmente possuem. 

Em segundo lugar, a performance ocorreu em frente a um museu, que é símbolo do poder religioso, misturado com o poder temporal. Trata-se de um sobrado senhorial. Portanto, a simbologia é evidente. E a intervenção artística aconteceu justamente no momento de uma solenidade oficial no interior do sobrado, com as presenças de autoridades, ou seja, com representantes do Poder.

Diz-se que a performance é teatral porque o ator encarnou uma personagem. Que personagem é essa? Uma personagem cheia de deformações, envolta em trapos, de modo a ocultar pele e cabelos. Ela também usava máscara, elemento muito poderoso no teatro.  Vestia paletó escuro e seu peito estava repleto de medalhas.

A personagem sentia dificuldade em caminhar. Seu andar era incerto e tortuoso. Às vezes se agarrava a um veículo ou poste do passeio público, parecendo conversar ou interagir com aqueles elementos inanimados, quem sabe buscando solidariedade para seu sofrimento, já que, aparentemente, não a encontrava entre as pessoas humanas.

Mas sua deformação – e sua solidão - não era somente física, pois gemia alto, repetindo os mesmos sons, e às vezes falava, ou grunhia, palavras roucas, até certo ponto difíceis de compreender, mas que tinham relação com o que se desenrolava no momento presente. Uma das palavras repetidas incansavelmente foi “vaidade”, em meio a muito desespero. Paralelas ao desempenho corporal, suas expressões verbais eram despedaçadas, contrastando com os discursos e os trajes de quem foi ou quis ser foco das atenções.

Um dos momentos mais significativos da performance ocorreu quando a personagem se sentou na calçada do Museu e colocou as duas mãos nos ouvidos, nos olhos e na boca, enquanto se contorcia e gemia alto. Esses gestos foram interpretados pelo único portal que noticiou o fato como uma forma de “chamar atenção para problemas de Oeiras, que as autoridades não conseguem resolver ou não dão atenção”.

Evidente que a performance tem sua força política, mas seus significados  não se limitam à essa esfera, o que, aliás, é comum em Oeiras, isto é, as tentativas de análises dos fatos sempre caem na vala comum da polaridade política partidária, salvo as raras e honrosas exceções.

Em verdade, a performance do 24 de janeiro (vamos chamar assim, embora tenha ocorrido na noite do dia 23) tem significados mais amplos e profundos e alcançam a sociedade como um todo. As deformações físicas e psíquicas são as deformações da sociedade, que também está perdida, tem o andar tortuoso e geme alto, sem encontrar afeto e solidariedade autênticos.

Tem o sentido político grego, ou seja, o da participação dos cidadãos nos destinos da comunidade política. As mãos nos olhos, ouvidos e boca não são apenas da personagem, mas de todos os estratos sociais, especialmente os que detém posições de mando e tem relevância econômica e social.

 É também uma referência à falta de visão, à surdez e ao silêncio que marcam o 24 de janeiro, que se transformou em Oeiras num alegre evento, bastante desconectado dos fatos históricos.

 O 24 de janeiro é hoje uma ocasião para transformar Manoel de Sousa Martins em um mito, e até certo ponto em um semideus. Ninguém nega sua importância histórica, mas daí a mitificá-lo e endeusá-lo vai uma grande distância.

 Essa deformação (que é, por assim dizer, uma das deformações da personagem encarnada na performance) pode ser combatida pela via do estudo, da pesquisa e da verdade histórica, muito mais adequadas e necessárias do que a laudação pura e simples, que, aliás, tem pano de fundo ideológico, já que o homenageado governou o Piauí, “com mão de ferro”, durante 20 anos.

A partir do momento em que governo e sociedade se unem para incensar uma personagem tida como autoritária por historiadores, isso não significa uma atualização acrítica e conivente? É esse tipo de liderança que queremos para sociedade de hoje?

Os estudiosos destacam o sentido pedagógico da arte, não só seu viés crítico, mas também o sentido de “antena captadora da realidade”, para dar a ver, alertar, esclarecer,  orientar as pessoas, que nem sempre percebem o que está acontecendo na frente do nariz. A performance do 24 de janeiro tem também esse significado. Além da sua coragem e agudo senso de percepção, aquele ator solitário veio se expor para dizer à cidade o que ela não vê ou não quer ver, proibida pelas conveniências e condicionamentos históricos, educacionais, sociais, econômicos, políticos, psicológicos e familiares.

Portanto, a contribuição da performance para a cidade de Oeiras foi enorme. Se for recebida sem preconceito e sem estreiteza mental, será de grande ajuda para compreensão da realidade presente e indicativa de correção de rumos.

Quem tiver olhos, ouça!

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